quarta-feira, 12 de maio de 2010

TRISTE ADEUS DE UMA ALMA IMPURA




**CONTO ESCRITO PARA A AULA DE LITERATURA BRASILEIRA


TRISTE ADEUS DE UMA ALMA IMPURA


Vinícius Gustavo Pinheiro Guimarães


A morte me estende a mão, e a oferta que faz é como um bálsamo a quem sempre celebrara o amor em sua forma mais sublime. O convite é tentador. Não há ninguém à beira de meu leito, rogando a Deus pela minha permanência neste plano, apenas o silêncio ensurdecedor capaz de estourar os meus tímpanos com tamanha quietude. A febre insiste em roubar os poucos sentidos que ainda me sobram. Dores lancinantes percorrem o meu corpo e parecem anunciar o desenlace. Se penso no futuro, vislumbro apenas a podridão de um corpo sendo devorado por larvas ávidas de carne humana.

Cego, não sei o que se passa à minha volta, mas vejo com nitidez o mar de dor que me afoga em solidão. O vento me aterroriza, balançando a janela com seus uivos, tal qual um lobo que se faz anunciar. Pela fresta da porta, posso senti-lo a enregelar- me os músculos da face. Os pesadelos parecem repetidos, já que neles sempre estou rodeado de seres espectrais, vermelhos-fosco, cheirando a enxofre, felizes por eu haver sucumbido às armadilhas do destino. Destino? não há
algoz tão cruel como tu. A esperança tornou-se palavra vazia de significado, e é com tristeza que me recordo que um dia moveu-me a ponto de me fazer acreditar que poderia gozar de uma tal chamada felicidade. O câncer corrói os meus ossos, maltrata-me como se fosse o mais vil dos homens e a piedade divina parece vir a passos lentos. Os amigos que angariei ao longo dos anos, esvairam-se com o dinheiro que perdi. As propriedades hipotecadas serão leiloadas para saldar as dívidas de uma vida de luxo, diversão, caprichos. A miséria revela-se no tecido roto de meu paletó. Sobrou-me apenas a consciência da efemeridade das veleidades humanas, refletidas nas festas, saraus, boutiques, que impiedosamente contrastam com a umidade das paredes sujas deste quarto que me serve de morada.

Ouço vozes que me acusam de crimes que não cometi, embora não tenha escapado impune, visto as tragédias que se abateram sobre mim. Deitado nesta cama, tenho a ligeira impressão de que o tempo parou para me ver desencarnar, como se isso fora um espetáculo encenado por um morto-vivo, cujos gritos são emitidos por uma alma aprisionada em frio invólucro. Angustia que consome a energia que ainda me resta. Sinto o amargor da saliva, o fel de um paladar que não reconhece nada além do azedo. Não vivo, pois se viver consiste em dar-se conta da realidade, posso dizer que vegeto ao lado de meus fantasmas.

Preciso fazer uma confissão, antes que a chama da vida se apague: amei! Apercebi-me de minha condição de mortal, ao sentir no peito aquilo ao que os poetas definem como AMOR. As paixões pueris da mocidade não me tornaram volúvel o suficiente para que não reconhecesse os legítimos sintomas de uma alma enamorada. Elida, Helena e Beatriz. Se pudesse dividir o meu coração em três partes, era a vocês que as daria. As lembranças de tempos gloriosos agora me assaltam, com a intenção de aumentar o meu martírio. Sinto que poderia ter morrido de amor, pois a cada uma de minhas ninfas benfazejas, devotei o mais puro dos sentimentos.

Elida sempre fora a mais bela dentre as moças da capital. Era um mancebo tolo, inconseqüente, angustiado. Encontrei em seus braços a compreensão pela qual sempre procurava. Seríamos representações fiéis de “Romeu e Julieta”, pois o romantismo que nos envolvia poderia resistir a todo e qualquer obstáculo material. Não pode resistir à morte. A flor mais bonita de meu jardim morrera antes de completar dezesseis anos, vítima de uma leucemia. A morte ceifou-lhe a vida. O seu cadáver sendo velado ainda me dá a sensação de que a felicidade procura pelos escolhidos. Pensei em fazer-lhe companhia, mas descobri em pouco tempo que a eternidade é a indagação da qual ainda não posso obter resposta. Eu a enterrei com o meu amor. Essa fora a condição para que eu continuasse a viver. Rosto pálido, lábios, roxos, pele fria. Assim a beijei pela última vez antes de tampar o caixão e ver a minha aurora despedir-se deste mundo de expiações. Talvez um dia a encontre, em outro corpo, outra vida, outra sorte.

Helena é a personificação da beleza. Os olhos de um azul cristalino me hipnotizavam. Filha de um marechal, foi cobiçada pelos jovens mais prósperos das redondezas, mas foi a mim a quem entregou o seu coração. No auge dos meus 40 anos, enamorei-me desta sílfide de dezessete anos e com ela recuperei a serenidade perdida. Entrou em meu caminho para fazer-me entrar no eixos. A união causou desgosto ao pai que a renegou. O sentimento que nos unira bastou para que enfrentássemos com valentia a indiferença dos amigos, tão despeitados com a alegria alheia. Chamaram-me “papa anjo”, mas bem sei o quanto a minha Helena era sensata, madura, amiga. Quis o criador que tivéssemos o primeiro filho, mas talvez mudasse de idéia, pois no dia do parto, levou-me a mulher e a filha ainda anjinho. Caí em depressão profunda. Refugiei-me no álcool, luxúria e desamor. Deus roubou-me todos os motivos para continuar a acreditar no milagre da vida.

Ainda com o coração calejado de amor, encontrei em Beatriz um porto. Viúva de um fazendeiro, conquistou-me pelo jeito franco, incisivo e assaz carinhoso, quase um paradoxo num corpo de mulher. Tirou-me do vício, devolveu-me a alegria, o amor-próprio e equilíbrio. Agradecia-me diariamente por devolver-lhe o colorido da existência, mas era minha a gratidão por haver me restituído o doce gosto de amar.

O frio aumentou. O vento ainda empurra com força a janela. Sem poder enxergar, percebo um clarão de uma luz ao longe, mas seria incapaz de dizer o que é. Sinto que começo a ficar sem ar. Golfadas de sangue, fazem a dor física tornar-se real. Onde está você, Beatriz? Por que não consigo chamar sua face aos meus pensamentos? O seu rosto parece uma incógnita. Não quero me despedir deste mundo sem antes invocar a sua lembrança. Abandonou-me? Nem Dante a procuraria com mais sofreguidão que eu. Incapaz de suportar o segundo luto, a viuvinha mais geniosa que conheci, deixou-me por ver-me já incapacitado pela doença. As más línguas dizem que fugira com um marinheiro. Recuso-me a acreditar. Quero conservá-la digna em meu coração. Sei que trilhei o caminho do amor com pés claudicantes, mas é tolo o homem que pensa poder escapar incólume a um encontro de almas.

Sei que de hoje não passo. Quero encontrar com o Criador, mas se tal honra não me for concedida, que o diabo tenha pena de mim. Amei... talvez isso me redima de uma parte dos pecados que levo comigo. Beatriz não virá.

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